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Contraste | Deutsche Welle

O programa “Contraste” aborda assuntos de política e direitos humanos, questões de desenvolvimento e meio ambiente.

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    Praia do Tofo em Moçambique: modelo para um turismo sustentável?

    Praias extensas, águas cristalinas e encontros regulares com o tubarão ...

    Praias extensas, águas cristalinas e encontros regulares com o tubarão baleia e a raia jamanta. Mas o Tofo, a localidade que pareceu ser um modelo de turismo sustentável, entrou em crise. Como será o seu futuro? A Praia do Tofo na província moçambicana de Inhambane oferece tudo para os turistas que procuram um "mergulho" espetacular na natureza marinha. Nesta zona do Oceano Índico é possível encontrar regularmente das maiores e mais impressionantes criaturas dos oceanos: o tubarão baleia e a raia jamanta. A pequena vila, que fica a cerca de 20 quilômetros do aeroporto de Inhambane com voos diretos para Maputo e Johanesburgo, tornou-se num dos pontos fortes do turismo em Moçambique. O Tofo já foi protagonista de inúmeros artigos em revistas de viagens e mergulho e serviu como palco de muitas reportagens de TV. Mas nos últimos anos começaram a surgir notícias preocupantes: os tubarões baleia já não aparecem com tanta frequência e o número de turistas internacionais também diminuiu. Fomos a Moçambique para saber como o Tofo pode sair da crise. Mesmo os turistas têm que ajudar O sol acaba de nascer na Praia do Tofo – os primeiros raios do dia brilham nas ondas do Oceano Índico. A areia ainda parece virgem, à espera das visitas do dia. Nos vários centros de mergulho já começou a azáfama. É preciso encher as garrafas de mergulho com ar comprimido. Os fatos de neoprena, as jaquetas, máscaras e barbatanas têm que ser colocados nos barcos. E estes têm que ser puxados por tratores que atravessam toda a praia de leste a oeste até chegar a zona da rebentação. No Tofo, mergulhar significa esforço físico. Como não há uma marina, os barcos têm que ser empurrados da praia – atravessando as ondas – até ao mar para chegar nos lugares de mergulho. E como as ondas costumam ser grandes, todos os passageiros, incluindo os turistas, têm que ajudar. Entre os mergulhadores de hoje está Ulisses de Paris, França: "Escolhi o Tofo por causa das raias jamanta e da atmosfera da localidade. É calma e oferece muitas possibilidades para mergulhar." São estes motivos que atraem a maior parte dos turistas do Tofo, conta a instrutora alemã do centro de mergulho Discovery Scuba, Joan Maria Bestler: "A maior parte das pessoas chega por causa das raias jamanta e dos tubarões baleia. Mas muitos também veem porque apenas querem ver algo grande", diz Bestler. "O que é bom, temos os dois aqui: as coisas pequenas e os animais grandes." Ver os dois gigantes do mar num único lugar Numa saída de mergulho autônomo no Tofo, há ótimas chances de ver o “vôo subaquâtico” das raias jamanta com as suas asas de até seis metros de largura, durante quase todos os meses do ano. E, na época de novembro a janeiro, é possível fazer snorkeling com o tubarão baleia. Quem já nadou ao lado destes animais gigantescos de até 12 metros de comprimento nunca vai esquecer a experiência de ver os raios do sol refletidos nos corpos azuis de pontos brancos dos turbarões. E sem perigo, pois este tubarão alimenta-se apenas de plâncton e de peixes pequenos. Apenas é preciso manter certa distância para não chocar contra as barbatanas do animal gigante, que em muitos locais do Tofo é conhecido pelo nome inglês "Whaleshark". Mas há alguns anos que os encontros com os dois gigantes do mar são menos frequentes. "Quando eu comecei a mergulhar, acho que foi há cinco ou seis anos atrás, havia muitas mantas e muitos tubarões", conta Lopo Malate, guia de mergulho moçambicano da Barra Lodge. Lembra-se dum recorde que teve quando fez os primeiros mergulhos na região: "Foi na zona do Tofinho que tive mais de cinquenta 'Whalesharks' a volta do barco. Tivemos que parar o barco, não podíamos andar. Não conseguíamos contar quantos eram." Estudar as possíveis causas da diminuição dos encontros Uma pequena comunidade de biólogos marinhos estrangeiros reside e trabalha no Tofo para estudar os tubarões e as raias. Ainda não há conclusões sobre o porquê da diminuição. Mas existem alguns indícios que apontam para a pesca excessiva e mudanças climáticas, segundo Lopo Malate: "Aqui os animais perseguem comida. Estão a procurar o plâncton para se alimentar. O que se tem verificado agora é uma mudança na corrente: ela está a desviar-se. Então a corrente leva o plâncton, toda a comida." Lopo Malate considera que a sobrepesca é um outro fator: "Não estou a falar dos pescadores locais que entram aqui dois quilómetros no mar e estão a pescar. Mas tem muitos barcos chineses, muitos barcos paquistaneses a pescar aqui", diz o guia de mergulho. "Agora, descobriram também as guelras da manta como remédio – associam aquilo para o tratamento do cancro ou uma coisa qualquer – já não faço ideia. Então, logicamente estão a pescar muito." Segundo Malate não se pode apontar exatamente um único fator para a diminuição dos encontros com os tubarões e as raias: "Há muita coisa associada que está a acontecer." "A ação dos mergulhadores cria uma interferência no ambiente aquático. Os peixes, de certa medida, podem sentir-se desconfortáveis com a presença humana", pensa António Cabral, guia de mergulho do centro Tofo Scuba e apresenta uma outra explicação possível. "Diria que talvez o aumento do número de mergulhadores aqui na zona do Tofo possa contribuir para que os animais se afastem um pouco. Não diria que os animais estejam a morrer, mas os animais não são espécies que sempre ficam num certo sítio", diz Cabral. "Pode ser que pelo desconforto que sentiram numa zona, migraram para outras áreas." Afasta o turismo o que os turistas procuram? Se for verdade, que os turistas afastam os tubarões e as raias, o Tofo corre o risco de ser vítima do próprio sucesso. Mesmo sem as últimas certezas sobre o comportamento do maior peixe do oceano, o tubarão baleia, há indícios claros de que o ecosistema nesta região da costa moçambicana está a passar por mudanças profundas, alerta Frank Weetjens. "Há cinco, seis anos bastavam duas ou três horas no mar para pescar suficientemente peixe para o dia-a-dia. Hoje acontece que os pecadores estão seis horas no mar e regressam sem peixe", diz o belga, que trabalhou durante vários anos pela cooperação alemã GIZ em Inhambane e coordenou a associação de mergulhadores moçambicanos AMAR. A tendência é altamente perigosa, pois sem ver grandes quantidades de peixe, poucos mergulhadores estariam dispostos a pagar os custos altos para ir ao Tofo. Para os europeus, destinos como a República Dominicana, o Egito ou a Tailândia oferecem voos, alojamento e alimentação com preços mais acessíveis que Moçambique. Mesmo os sul-africanos, outra clientela tradicional da costa do sul de Moçambique, já escasseiam. A devaluação da sua moeda, o Rand, encareceu as viagens, mas também se ouvem muitas queixas sobre a extorsão de dinheiro por polícias corruptos nas estradas moçambicanas. E houve quem preferiu não viajar por causa do conflito violento entre a RENAMO, maior partido da oposição moçambicana, e o Governo. Fatores que fazem com que muitos sul-africanos abandonem a idéia de passar as suas férias em Moçambique. O Tofo sofre de má fama por causa de alguns acontecimentos ocorridos nos últimos anos, conta Weetjens: "Foram capturados muitos tubarões e raias e mataram-nas na praia. As imagens foram postadas no Facebook. Em pouco tempo, esta situação provocou danos na reputação do Tofo." Pois, segundo Weetjens, muitos turistas que viajam ao Tofo perguntam logo como aqui são tratados os recursos e o meio-ambiente. Questões como o meio-ambiente é tratado, também preocupavam o moçambicano Rodriguez Bernardo Timóteo, quando trabalhou como pescador no Tofo. "O que mais me fez decidir de querer ser um mergulhador autónomo foi o impacto da pesca. O mar já estava a ficar quase vazio", conta Rodriguez como é conhecido no centro de mergulho Diversity Scuba. Hoje ele é um dos instrutores de mergulho moçambicanos melhor qualificados. Rodriguez relata como a sua família recebeu a notícia de que iria deixar de ser pescador e começar uma formação como mergulhador profissional: "Quando comecei a mergulhar todos ficaram um pouco preocupados, mas foi muito difícil para eles saberem se na verdade iria fazer o que estou a fazer hoje em dia. Mas sim, na verdade, é mesmo essa que queria como forma de preservar melhor os animais!" Hoje, o seu irmão também está a ser formado como guia de mergulho. Rodriguez continua a pescar como passatempo, mas diz que sempre tem o cuidado de não tirar demasiado peixe do mar. O mar é mais do que apenas uma fonte de proteínas Numa zona em que as pessoas tradicionalmente vêm o mar apenas como fonte de proteínas, ainda há pouca consciência sobre as fragilidades do ecosistema marinho. Esta é a opinião da guia de mergulho alemã Joan Bestler. Para ela um indício claro é a pesca de tubarões, que são caçados única e exclusivamente pelas suas barbatanas. Uma prática pouco sustentável que é incentivada pelo consumo da sopa de barbatanas de tubarão na cozinha chinesa. Joan Bestler: "Para eles isto significa o pão de cada dia, alimentação. O vencimento mensal da população local aqui é baixo. O dinheiro extra que as pessoas ganham [com a venda das barbatanas de tubarão] é tão alto que não podem parar." Mas Rodriguez, contudo, vê melhorias nos últimos anos, quando afirma que a população local tem mais consciência dos problemas ambientais: "Aumentou e está cada vez maior. Porque eu como mergulhador moçambicano e mais os outros colegas lutamos bastante para que isso mude." Formar mergulhadores moçambicanos Para que mais moçambicanos possam ser guias e instrutores de mergulho, foi fundada a associação Bitonga Divers. Nos últimos sete anos, já financiou a formação de 30 moçambicanos com bolsas e deste modo conseguiu aumentar muito a presença de pessoas da região nos centros de mergulho que antes eram dominados por sul-africanos e europeus. A Bitonga Divers, que por sua vez é financiada pela ONG norte-americana Ocean Revolution, também organiza palestras para explicar à população local porque não deve pescar os tubarões, por exemplo. No início, as reações eram negativas, pois as pessoas tinham medo de perder uma fonte de rendimento, conta Kudzi Vitorino, a presidente dos Bitonga Divers: "No princípio existiam pescadores que reagiram mal. Mas com o passar do tempo começaram a entender a mensagem e porque fazemos isto. Já não praticam tanto como quando estávamos a começar com as palestras." Lopo Malate, também participa nas ações dos Bitonga Divers e tenta convencer os pescadores locais de que também é preciso proteger os tubarões. "O que as pessôas veem no tubarão? Veem-no como um monstro, uma coisa que não deveria existir no oceano", diz Malate. "Então, quando tento falar da cadeia alimentar e da importância dos tubarões no mar, as pessoas começam a entender que afinal de contas é bom ter os tubarões nas águas." Segundo Frank Weetjens, para resolver os problemas ambientais do Tofo é preciso incluir no processo os pescadores e a população local: "Estou convencido de que se os vários atores aqui se juntassem e começassem a criar uma zona marítima de proteção ambiental, a fama do Tofo iria melhorar." Tofo depende do turismo "O Tofo sem turismo não existiria. O Tofo depende em 90 por cento do turismo", diz o guia de mergulho Lopo Malate. Conheceu o Tofo pela primeira vez há vinte anos atrás: "Era muito diferente, o nível de desenvolvimento que existe hoje no Tofo foi graças ao turismo. Mesmo os pescadores têm familiares que trabalham nas estâncias turísticas, nos 'lodges', ou têm negócios. Sem turismo o Tofo desaparece." Frank Weetjens pensa que existe um nicho ideal no mercado de turismo internacional para o Tofo. Segundo Weetjens, o ecoturismo com os encontros com os gigantes do mar – o tubarão baleia e a raia jamanta – poderia ser a aposta para atrair os turistas a Praia do Tofo. "Mas é preciso pensar de uma maneira diferente e implementar uma outra estratégia para que não se perca a biodiversidade que hoje existe", diz Weetjens. Na encruzilhada Weetjens adverte que o tempo escasseia para que o Tofo e o turismo nesta zona de Moçambique sejam colocados no bom caminho. "Estamos numa encruzilhada muito importante. Há apenas duas vias: se continuamos assim, vamos perder tudo dentro de pouco tempo. Mas também temos a possibilidade de inverter a situação para fazer diferente e expandir." Moçambique tem a possibilidade de criar uma reserva marinha para proteger esta zona única no planeta e para assegurar que no futuro ainda venham turistas ao Tofo para mergulhar com as raias jamanta e os tubarões baleia no Índico.

    Apr 1, 2015 Read more
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    Vicente Berenguer Llopis, “o padre branco de coração negro”

    Mudou-se para Moçambique em 1967. Ia pregar o Evangelho, mas ...

    Mudou-se para Moçambique em 1967. Ia pregar o Evangelho, mas a sua missão acabou por ir mais longe: o missionário espanhol apostou na educação como forma de combater a pobreza e denunciou o Massacre de Wiriyamu. Quando chegou a Moçambique, Vicente Berenguer instalou-se na província central de Tete, mais tarde mudou-se para a capital, Maputo, e hoje vive na vila de Ressano Garcia, na fronteira com a África do Sul. Em Moatize, Tete, apercebeu-se de que a maioria dos moçambicanos com quem tinha contacto tinha concluído apenas a quarta classe e que grande parte era analfabeta. Começava assim o seu envolvimento na educação: na vila carbonífera mandou construir o primeiro liceu. Nos anos 1970, Berenguer enfrentou as políticas colonialistas portuguesas que excluíam a população negra não assimilada, foi interrogado diversas vezes pela PIDE, a polícia política portuguesa, e convidado a deixar Moçambique. O povo, esse, confiava nele, diz o padre espanhol. DW África: Alguns moçambicanos vêem-no como o “padre branco de coração negro”. Como interpreta esta alcunha? PV: Eu estava na missão de Changara, a FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique] descia já das zonas do norte de Mucumbura para a zona de Changara e começou a ter contactos tanto com a missão como com a população, era um sistema que utilizavam. Então, um dia numa aldeia, Cancuni, havia um grupo de homens que eu conhecia a falar e quando eu cheguei, eles fecharam a boca todos. O velho Zoni utilizou esta frase: “mas por que fechámos a boca se o padre Vicente é branco, mas o coração dele é preto como o nosso?” Queria dizer: „ele está a sentir como moçambicano”. DW África: Como alguém de fora, como espanhol, a quem a independência de Moçambique não dizia diretamente respeito, como começou a interessar-se por essa causa? PV: Eu acho que [perante] qualquer injustiça, seja dada onde for, ainda que não seja no nosso país, somos obrigados a defender os direitos das pessoas. Via-se claramente que este povo tinha o direito à independência. Portanto, ainda que eu fosse espanhol, estava a trabalhar aqui e tinha de me inteirar dos direitos deste povo. DW África: E chegou a levantar a voz de forma direta em prol dessa causa. Quando começou essa sua postura ativa? PV: Não podemos dizer que houve um momento determinado em que levantámos a voz. Talvez tenha sido o dia-a-dia do nosso trabalho em que alguém podia reparar que nós realmente estávamos a favor da independência. Houve certos momentos em que tivemos de nos pronunciar. Houve uma reunião famosa entre os padres brancos e, sim, declarámos abertamente que este povo tinha o direito à independência. “Vamos ser expulsos, mas por enquanto podemos trabalhar aqui dentro, ainda consciencializando muitas coisas.” Então, os padres brancos optaram por fazer uma declaração. Quando colocaram um avião no aeroporto da Beira, penso que 44 foram expulsos. Nós continuámos a trabalhar aqui fazendo tomar consciência da realidade deles, do orgulho da própria cultura, do ser moçambicano, do ser africano e daqueles direitos que tinham a ser um povo independente e a levar-lhes a renda da nação deles. DW África: O que é que distinguia o seu dia-a-dia durante a época da luta de libertação de uma época em que não houvesse luta armada? PV: Era uma vida mais tensa. Porque não podemos esquecer que nós estávamos rodeados por um exército português, estávamos rodeados por uma PIDE, estávamos rodeados por muitos portugueses que se sentiam feridos quando se falava dos direitos deste povo. Então, era uma tensão constante. Eu fui interrogado pela PIDE x vezes. Eles encontravam, por exemplo, medicamentos de origem espanhola em bases que eles atacavam ou em aldeias. E perguntavam-me se eu conhecia. Sim, eu conhecia, “fui eu que entreguei.” “Então, o senhor entregou à FRELIMO.” “Não, eu entreguei à população. Nunca vi escrito na cabeça de ninguém: FRELIMO. Eu entrego à população, mesmo mantas e tudo isso.” Uma vez eu fui mais para o interior e a tropa portuguesa estava a recolher as pessoas para irem para os aldeamentos e eu fui apanhado pela tropa portuguesa. Então, queriam que eu voltasse e eu disse: “Preso eu vou. Agora se não vou preso, eu continuo o trabalho por aqui.” Havia aquela concordata, era muito difícil eles prenderem-te sem uma causa muito, muito clara. Então, as vezes em que fui interrogado pela PIDE, em Tete, foi simplesmente à base de suspeitas. DW África: Que consequências tinham esses interrogatórios? PV: [Os interrogatórios mostravam que] realmente estávamos a ser vigiados. Mesmo dentro de grupos de moçambicanos havia pessoas que podiam participar à PIDE partes da tua vida e do teu trabalho. DW África: No dia 16 de dezembro de 1972, as tropas portuguesas atacaram três aldeias na província de Tete: as povoações de Chawola, Juwau e Wiriyamu. Os sobreviventes do massacre, que ficou conhecido como Massacre de Wiriyamu, relataram os acontecimentos a missionários espanhóis. Um deles foi o senhor… PV: Eu ia de machibombo de Changara até Tete. E quando passámos por essas aldeias, estavam todas em chamas e toda a gente estava a correr para a estrada. Parámos aí, a gente berrava e dizia que estavam a ser mortos, chacinados, bombardeados e foram subindo para o machibombo até não caberem mais e fomos até Tete. Outros foram a pé e como puderam fugir. Tete não fica tão longe de Wiriyamu. Portanto, eu fui, diríamos, testemunha, porque vi as chamas e ouvi aquelas pessoas. DW África: Denunciou o Massacre de Wiriyamu a nível internacional. Como fez a denúncia? PV: Quando Marcelo Caetano visitou a Inglaterra, Hasting publicou este relatório que fizemos, cada um colaborou no que podia, uns com nomes, outros com ideias. Bom, negaram que isso fosse real e negaram mesmo a existência de Wiriyamu. E através da Justiça e Paz fomos à Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. Então, aí denunciámos através da televisão, através de palestras, através de tudo. Pedimos que viesse aqui uma comissão ver que Wiriyamu existia e que os massacres tinham sido realizados e que as centenas de pessoas ainda estavam lá. Na Holanda, o cardeal Alfrink imediatamente telefonou para Roma e a igreja mexeu-se muito neste sentido e os políticos também. DW África: Há historiadores que consideram que este massacre mudou o rumo da guerra colonial. Concorda? PV: Bom, eu pessoalmente acho que não. Eu acho que isto estava a cair já, mesmo a tropa estava desanimada, podia haver dirigentes do exército fortes, mas o que eu via com os soldados portugueses, eles estavam desanimados, diziam que isto não era para eles, era a ganância económica de alguém, não era para eles nem para Portugal. Eu acho que isto estava a decair já. Antes já tinha havido importantes massacres, em Mucumbura, Inhaminga. Só que este de Wiriyamu passou para fora. E aproveitou-se também a ida de Marcelo Caetano ao exterior e [teve mais projeção], mas eu acho que já se estavam a preparar. Só que, enquanto Mucumbura estava a 300km de Tete, Wiriyamu estava às portas de Tete. E a cidade de Tete corria perigo. E o mundo ficou escandalizado quando [os relatórios] foram publicados. DW África: Acha que ainda existem feridas na população moçambicana relacionadas com a guerra de libertação? PV: Não, eu acho que a FRELIMO sempre soube explicar muito, muito bem que a guerra não era contra os portugueses, era contra o exército português, o Governo português. Portanto, eu acho que não houve feridas, diríamos assim. Se há alguma ferida, pode ser daqueles mais extremistas, no sentido de racistas, ao ver que aqui há brancos moçambicanos com todos os direitos, de quatro, cinco, seis gerações, podem sentir-se um bocado feridos, mas da luta de libertação, eu acho que não. DW África: Houve algum episódio da guerra de libertação que o tenha marcado especialmente? PV: Um [episódio] caricato muito bonito foi que eu uma vez recebi uma encomenda de Espanha, umas canas de bambu pequenas, porque na aldeia onde vivia o meu irmão fazem muita mobília de bambu importado. E ele queria vir aqui ver se havia. E eu falei que aqui, onde eu estava, não havia bambu. E eles pensavam que eu não sabia o que era bambu. E enviaram-me numa caixinha uns pedacinhos de bambu. E aí chamou-me a PIDE em Changara, nos correios, para eu dizer o que era isso. “Isto é bambu.” “Parte para saber se é bambu ou não. Vamos partir isto para saber o que tem dentro.” “Podem partir, mas isso é bambu”. Então, é caricato desconfiar de umas canas pequenitas. Não sei se havia algum segredo, mas era bambu tapado. É uma coisa caricata.

    Mar 24, 2015 Read more
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    “Não foi só o homem que libertou Moçambique”, diz Geraldina Mwitu

    Geraldina Mwitu combateu ao lado de homens durante a luta ...

    Geraldina Mwitu combateu ao lado de homens durante a luta armada no seu país. Recebeu, tal como eles, treino político e militar e viveu nas bases da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique. Era ainda muito jovem quando começou a dar aulas nas bases da FRELIMO. Depois de deixar a sua terra-natal, Mueda, na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, Geraldina Mwitu ensinou português a crianças órfãs e crianças cujos pais estavam na frente de combate. O Massacre de Mueda, que ocorreu a 16 de junho de 1960, é considerado um dos últimos episódios que marcaram a resistência pacífica dos moçambicanos ao colonialismo. Foi o massacre que levou muitos daquela região a juntar-se à luta de libertação. DW África: Era em Mueda que se encontrava na altura do massacre? Geraldina Mwitu (GM): Quando se deu o tal massacre, eu só vi as pessoas mais velhas a andar de um lado patra o outro a dizer que os colonialistas lá em Mueda mataram os moçambicanos que foram pedir a independência. Mas em vez de serem concedidos a tal independência, os colonialistas responderam com armas. E três pessoas foram presas. Isto foi o culminar das grandes atividades que o povo maconde vinha desenvolvendo. Porque primeiro começou a política para aquele povo que foi [informado de que] os tanzanianos já eram independentes. DW África: Que efeitos se fizeram sentir na região depois do massacre? GM: Muita população abandonou o distrito para se ir refugiar na Tanzânia. Porque ganhou medo com aquela situação. Ficou a entender que o colono, em vez de só colonizar, estava a massacrar-nos e a matar-nos. Mas algumas pessoas resistiram. Continuaram a viver na província e a mobilizar o povo de que não podia parar com o massacre, que tinha de combater politicamente, tinha de lutar até que eles conseguissem ter a sua independência. DW África: Quando começou a ter uma postura ativa pela causa da independência? GM: A partir de 1964. Nesse ano foi morto o padre Daniel. Nós lá na missão de Nangulolo vivíamos com as irmãs da Consolata e os padres monfortinos. Depois da morte do padre, a nossa missão encheu-se da tropa portuguesa. A partir dali sentimos que a guerra estava eminente. Numa das vezes que a tropa se deslocou para o posto administrativo de Muidumbe entrou na emboscada dos guerrilheiros da FRELIMO. A partir dali, já estávamos a viver a luta de libertação nacional. DW África: Antes de se juntar aos combates dentro de Moçambique, esteve na Tanzânia e envolveu-se na área da formação. Como passou de professora a combatente? GM: Eu saí de Moçambique com a minha quarta classe, fui para a Tanzânia diretamente para o centro de refugiados de Rutamba. Daí fui destacada para ir ensinar as outras crianças que não sabiam ler nem escrever no ensino em português. Depois fui indicada para ir a Dar-es-Salaam aumentar os meus conhecimentos. Porque em Dar-es-Salaam já haviam começado a lecionar a partir da quinta classe. Mas infelizmente não terminei. Nos princípios de fevereiro, chegada a Dar-es-Salaam, não levei muito tempo, ocorre a morte de Eduardo Mondlane, nosso Presidente. Dispersámos. Uns foram para Nachingwea, para o centro de preparação político-militar, alguns, que não tinham idade, como no meu caso, foram encaminhados para o centro estudantil de Tunduru, onde havia crianças órfãs, crianças cujos pais estavam na frente da luta de libertação nacional. E, estando em Tunduru, mais algumas camaradas, fomos indicadas para ensinar aquelas crianças. Aí ensinei durante dois ou três anos. Fui indicada, então, para poder passar para o centro de formação político-militar, Nachingwea. DW África: Havia diferenças entre os treinos dirigidos às mulheres e aqueles que eram dirigidos aos homens? GM: Nenhuma diferença. Era tal e qual. Havia pelotões das meninas e pelotões dos homens. Mas quem dirigia os treinos eram os homens acompanhados das mulheres que eram instrutoras. DW África: Até que ponto o papel das mulheres foi determinante na luta de libertação? GM: O primeiro grupo de 25 meninas foi muito determinante: “nós, sendo moçambicanas, queremos ir lutar lado a lado [com os] homens.” E assim aconteceu. Essas 25 meninas treinaram, depois foram lançadas para o interior de Cabo Delgado. Elas, para além de fazer o carregamento do material, lutaram [ao lado] dos homens para poderem combater o inimigo comum. Para além do combate, a mulher mobilizava a população. A mulher estava à frente do ensino, a mulher estava na saúde, a mulher estava ao cuidado das crianças órfãs, ao cuidado das crianças [cujos] pais estavam na frente da luta de libertação nacional. DW África: Chegou a sofrer discriminação por parte de colegas homens por ser mulher combatente? GM: Não. Porque nós considerávamos que [estávamos todos ali] para um fim comum. Não podia haver discriminação. Como mulher desempenhei o papel que me cabia na altura, desempenhei o papel que era necessário: dar a minha contribuição para que Moçambique fosse independente. DW África: Há algum episódio da época da luta pela independência que a tenha marcado especialmente? GM: Isto nunca me vai sair da cabeça. A viagem que eu fiz com os meus colegas para Moçambique depois dos treinos. Entrámos em Moçambique, ficámos nas bases e o nosso chefe disse: “uma semana com as vossas famílias". E eu fui encontrar-me com a minha irmã. E ela disse: “quando for à Tanzânia, há-de dizer à mamã que eu estou bem, a mana mais velha também está bem e que eu já tenho três crianças e estou à espera de bebé”. Dormimos. De manhã, eu saí, despedi-me dela. Cheguei à Tanzânia, no centro de preparação político-militar, a minha intenção era só de ver mamã, mamã, mamã. Uma semana depois, à tardinha, eu estava sentada com as minhas colegas. “Na rádio estão a falar do teu nome, não sei se é teu irmão, não sei quem morreu lá em Rutamba.” Rutamba era o centro de refugiados onde estava a minha mãe. Eu saí do centro, quando eu cheguei lá em Rutamba, encontrei meu pai, encontrei meu irmão, então é que eu soube que a mamã faleceu. Aquela informação que eu trazia de Moçambique não pude dar à minha mãe. DW África: 40 anos depois de proclamada a independência de Moçambique, acha que valeu a pena lutar por ela? GM: Valeu. E valeu muito. Porque ganhámos a nossa independência, já estamos a conduzir o destino do nosso país. Libertámos a terra, libertámos o homem, mas a luta continua. Temos que lutar pela nossa economia, temos que lutar agora contra a pobreza. À medida que os anos passam, aparecem outros desafios e nós, com esta idade, já não vamos a tempo, mas temos que inculcar à nova geração que a luta deve continuar para o bem do país. DW África: Durante a luta de libertação nacional, lutou ao lado de homens, assumiu um papel idêntico ao dos homens. Como vê hoje o papel da mulher em Moçambique? GM: A luta da mulher continua. Noutras vertentes. Nós, durante a luta de libertação nacional, estávamos a lutar pela emancipação da mulher, que até agora continua. Quando chegámos cá, encontrámos outra situação que é a violência contra a mulher. A luta continua. Vai continuar. Sempre que houver outros desafios que obriguem a mulher a lutar pelo seu bem. DW África: Quais são, na sua opinião, os maiores desafios para a mulher moçambicana? GM: Ela tem que continuar a lutar. Quem sabe se um dia podemos ter uma Presidente. A luta não pára, ela tem de continuar para [obtermos] essa igualdade. Porque não foi o homem só que libertou este país. Iniciou-se a luta e ela deve continuar para os novos desafios.

    Feb 16, 2015 Read more
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    "A independência é um património de todos", lembra Carlos Reis

    O ex-combatente Carlos Reis ensinou na Escola-Piloto do PAIGC. E ...

    O ex-combatente Carlos Reis ensinou na Escola-Piloto do PAIGC. E estava em Conacri aquando da invasão portuguesa, em 1970, e da morte de Cabral, dois momentos marcantes na vida do antigo ministro da Educação. Carlos Reis juntou-se à luta de libertação nacional quando era ainda estudante. O antigo combatente e histórico do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAICG) foi o primeiro quadro do partido a trocar Conacri por São Vicente, onde chegou no início de maio de 1974. Tinha apenas 28 anos quando assumiu a pasta da Educação entre 1975 e 1981, nos primeiros anos da independência de Cabo Verde. O histórico do PAIGC participou também na criação do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), em 1980. Atualmente é investigador e um dos administradores da Fundação Amílcar Cabral, na Cidade da Praia. Nesta entrevista à DW África, Carlos Reis relembra os dias em que dava aulas na Escola-Piloto do PAIGC, a invasão portuguesa de Conacri, em 1970, e a morte de Amílcar Cabral, entre outros momentos que mais o marcaram durante a luta de libertação. DW África: Quando estava em Portugal enviava muito material informativo para Cabo Verde. Como é que conseguia ludibriar a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)? Carlos Reis (CR): A maior parte das vezes trazia eu próprio o material - por vezes, até de boleia de avião militar! Enfim, eram situações que se viviam porque havia motivação, havia juventude e acreditava-se numa causa. Acreditava-se na necessidade de levar as informações contidas nesses documentos a um número alargado de jovens, sobretudo a jovens que se encontravam aqui nas ilhas, tentando demonstrar que a luta era possível e que era possível a independência nacional. DW África: A mobilização de novos militantes era difícil, sobretudo numa altura em que se temia o comunismo? CR: Foi sempre difícil porque se temia o comunismo, mas sobretudo porque se temia a PIDE! De cada vez que julgávamos ter um determinado grau de eficácia organizacional havia uma redada de prisões e, na verdade, ia abaixo a organização. DW África: Além de Lisboa também passou por Argel. E, em 1970, surge a oportunidade de descer até à Guiné-Conacri e integrar a luta armada. Esse era o maior desejo de um combatente da liberdade naquela altura? CR: Foi-se encontrando o caminho, caminhando. Havia, de facto, uma vontade muito grande da minha parte. Eu queria mesmo entregar-me a esta causa, fazer aquilo que estivesse ao meu alcance e aprender a fazer coisas que não sabia para ser útil a uma causa que eu acreditava que era necessária. DW África: Foi professor na Escola-Piloto do PAIGC, em Conacri. Que ensinamentos e valores procurava transmitir aos seus alunos? CR: O próprio trabalho político ensinou-me que o cerne principal da luta está efetivamente na superação constante, no estudo constante, naquilo a que, ao fim e ao cabo, se chama a educação. Por coincidência, comecei por ser professor mesmo antes de ir, porque exerci um ano aqui como professor. Os jovens nessa época eram obrigados a fazer o serviço militar. Eles eram obrigados por lei a fazer a guerra colonial e, portanto, era preciso uma atitude política clara de rejeição dessa guerra. Era preciso fazer um trabalho político junto dos jovens que corriam esse risco. Os representantes do regime colonial tentavam passar a mensagem que Portugal não tinha colónias, tinha era províncias ultramarinas. Tentavam esconder realidades como, por exemplo, a Lei do Indigenato, que permitia que os chefes de posto e os administradores recorressem ao trabalho forçado. DW África: Acreditava então que a "arma da teoria" era tão importante quanto a luta armada? CR: Absolutamente. Ou até mais importante, porque a luta armada, em princípio, é cronologicamente limitada. Felizmente que era vista apenas como recurso de última instância, como algo que apenas serviu para responder à violência do inimigo. Os aviões bombardeavam as populações e deixavam tabancas, crianças e culturas agrícolas destruídas. Eles envenenavam os territórios com desfolhantes tóxicos. Há fotografias que documentam pessoas, incluindo crianças e mulheres, que ficaram com marcas de queimaduras. Portanto, era preciso mostrar que este era um povo que estava de pé na sua própria terra, disposto a dar resposta a provocações e a atos criminosos desse género. Tentou-se demonstrar que os africanos nacionalistas é que eram os terroristas. Mas, numa das suas últimas intervenções, Amílcar Cabral refere-se ao ataque que as forças militares colonialistas fizeram à delegação das Nações Unidas que em 1972 visitou as regiões libertadas da Guiné-Bissau. E Cabral falou do terrorismo praticado sobre essa delegação. DW África: Também vários grupos de jovens europeus, incluindo alguns alemães, chegaram a visitar as zonas libertadas. Como é que foram as reações perante esta sociedade "sui generis" que tinha sido aí criada? CR: Era de facto uma inovação na época. Um grupo de homens, a quem as autoridades coloniais insistiam em apelidar de terroristas, aparecer tão preocupado com causas como a educação e a saúde. As zonas libertadas, do ponto de vista conceptual, são uma espécie de contribuição teórica de alguém que pensou o movimento de libertação nacional e que tentou demonstrar e ensinar que não se bate pela independência apenas para se ter ministros, uma bandeira ou um hino nacional. Como o próprio Cabral dizia, as independências só têm razão de ser se servirem para a melhoria das condições de vida das pessoas. DW África: As Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), o braço armado do PAIGC, passaram por fases de esmorecimento moral. Aliás, quando António de Spínola chegou à Guiné vivia-se esta fase de desgaste militar e psicológico, que duraria até ao assassinato de Amílcar Cabral, em janeiro de 1973. Como é que viveu este período? CR: Efetivamente. Não é por acaso que os principais aliados que as autoridades coloniais encontraram na época foram agentes da polícia francesa. Os franceses tentaram vários projetos de derrube e creio mesmo de assassinato de Sékou Touré [então Presidente da Guiné], cuja radicalização era, para eles, um desafio. Creio que isso também está relacionado com a aproximação dos franceses às autoridades portuguesas e à PIDE, na procura de elementos e na criação de condições para organizar o desembarque de Conacri [operação "Mar Verde"]. Os agentes da PIDE e da segurança militar portuguesa foram apoiados largamente por agentes da polícia francesa. Aliás, um dos projetos de assassinato de Cabral também envolveu um agente francês. E, naturalmente, o desembarque de Conacri só foi possível porque os que desembarcaram foram convencidos de que havia elementos que os apoiavam. Foi essencialmente graças à reação das tropas do PAIGC que foi possível responder, em parte, contrariando os objetivos da tropa de desembarque, que consegue libertar alguns presos, mas não sem deixar de atacar o secretariado do partido. DW África: Estava presente no porto de Conacri quando se deu a invasão portuguesa? CR: Sim, já estava no porto de Conacri. Era um jovem recém-chegado, não era um recruta, mas quase. Era um subordinado. Mas já lá estava, assim como estava aquando do assassinato de Amílcar Cabral. DW África: A invasão portuguesa de Conacri e a morte de Amílcar Cabral foram dois dos momentos que mais o marcaram durante a luta de libertação? CR: Sim, de maneiras diferentes. O meu primeiro encontro com Amílcar Cabral marcou-me imenso. É algo que ainda hoje me suscita algum encantamento. Naturalmente a invasão de Conacri mobilizou-me, obrigou-me a amadurecer muito mais como combatente porque ajudou a demonstrar a natureza do inimigo. Mas sobretudo o assassinato de Cabral foi algo que buliu profundamente com qualquer um de nós, qualquer um que se tivesse entregue com sinceridade à causa da luta. DW África: Estava em Libreville (Gabão) quando recebeu a notícia do 25 de Abril de 1974 em Portugal. Foi uma surpresa ou o PAIGC já contava que acontecesse alguma coisa, até porque tinha reforçado os ataques contra os quartéis portugueses? CR: O PAIGC não desistiu de ir fazendo campanhas de mobilização junto das comunidades onde havia cabo-verdianos. E eu tinha ido [de Conacri] com uma mensagem de Aristides Pereira – já secretário-geral-adjunto ainda não eleito do PAIGC – junto do Presidente [Agostinho] Neto solicitando apoio para me deslocar nos locais onde houvesse concentrações de cabo-verdianos. Vinha já de Ponta Negra, tinha estado com Lúcio Lara e com elementos militares, guerrilheiros do MPLA, na base de Dolizi, junto da fronteira com Cabinda. Quando regressava de Ponta Negra, ele recebeu a notícia do 16 de Março e que um destacamento militar nas Caldas da Rainha, comandado por Almeida Bruno, interpreta mal um sinal que ele julgou que tinha sido dado para o 25 de Abril e desata a marchar. E ouvi isso de Lúcio Lara vindo de Ponta Negra para Brazzaville. Mas os que sabiam que o 25 de Abril podia não ser aquilo que se dizia tinham de continuar a luta. Porque uma coisa eram os objetivos da democracia em Portugal, outra coisa, embora tivesse de haver necessariamente alguma articulação, era o processo da independência - no caso concreto, de Cabo Verde, mas também em relação às outras colónias. DW África: E depois de Libreville volta a Conacri? CR: Volto a Conacri e encontro o Aristides Pereira, já com notícias do 25 de Abril. Entretanto já se tinham passado duas semanas. Encontrei-me com um grupo de camaradas na Holanda, onde já tínhamos também uma base de apoio importante. E decidimos que devíamos começar já a apalpar o terreno e que não devíamos esperar mais tempo. Lembro-me ainda do dia em que passei a fronteira em Lisboa. Na verdade, havia muita desorientação. E vim para Cabo Verde numa quarta-feira, num voo da TAP, na semana que se seguiu ao 19 de maio. DW África: O que é que sentiu quando pisou Cabo Verde depois de tantos anos de luta e de vida na clandestinidade? CR: Estava emocionado. Mas tinha a certeza de que era só uma questão de tempo até sermos independentes e que íamos conseguir que a maioria das pessoas abraçasse a causa da independência. DW África: Quase quatro décadas depois da independência de Cabo Verde, a luta valeu a pena? CR: Acho que os cabo-verdianos, de uma maneira geral, consideram que sim, que valeu a pena. E hoje a independência é um património, é um bem, é um valor que naturalmente é de todos nós.

    Feb 16, 2015 Read more
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    O ano de 2014 nos PALOP

    Moçambique alcançou um novo acordo de paz e foi a ...

    Moçambique alcançou um novo acordo de paz e foi a votos. Várias manifestações foram reprimidas em Angola. A Guiné-Bissau regressou ao caminho da estabilidade. Estes são apenas alguns dos temas de destaque do ano. Moçambique despede-se de “Pantera Negra” e “Monstro Sagrado” O país inicia o ano de luto: morreu na madrugada de 5 de janeiro, em Portugal, o futebolista Eusébio Ferreira, devido a uma paragem cardio-respiratória. O “Pantera Negra” nasceu em Moçambique, mas foi no Benfica que se afirmou como futebolista, tendo sido considerado um dos melhores jogadores do mundo e a primeira super-estrela africana do futebol. Continua conflito com a RENAMO A 21 de janeiro soube-se que os homens armados da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) estavam em Moatize, província central de Tete – uma região de peso para a economia do país, devido à atividade das minas de carvão. No final do mês (30.01), a sociedade civil, Governo e Nações Unidas afirmam que há registos significativos na preservação dos Direitos Humanos no país. No dia 9 de fevereiro, o MDM (Movimento Democrático de Moçambique), a terceira força política do país, venceu a repetição das eleições autárquicas, no município de Gurué, na província central da Zambézia. Uma nova CNE - Comissão Nacional de Eleições No dia 10 de fevereiro, o Governo e a RENAMO chegaram a acordo sobre os critérios da composição da nova Comissão Nacional de Eleições. No final de mais uma ronda de negociações entre a RENAMO e o Governo, Saimone Macuiane, chefe da delegação da RENAMO, afirmou: “é nosso desejo que o ambiente [de entendimento] continue, para que os moçambicanos possam acolher os resultados do trabalho – que dura há já mais de um ano. E a breve trecho, temos esperança que é possível concluir a legislação eleitoral”. Moçambique despediu-se de outro futebolista histórico Depois da morte de Eusébio, Moçambique despediu-se do “Monstro Sagrado”. O futebolista Mário Coluna faleceu a 25 de fevereiro, aos 78 anos de idade. Foi um dos melhores jogadores do Benfica e foi o capitão da seleção portuguesa que alcançou o terceiro lugar no Mundial de 1966, juntamente com o outro jogador histórico que nasceu em Moçambique, Eusébio. De acordo com o relatório anual do departamento de Estado norte-americano sobre Direitos Humanos, divulgado a 28 de fevereiro, os serviços secretos moçambicanos controlam os telefonemas e o correio eletrónico de membros dos partidos da oposição. A 3 de março, o então ministro da Defesa de Moçambique, Filipe Nyusi, foi eleito candidato da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), o partido no poder, às eleições presidenciais de 15 de outubro. Moçambicanos sairam várias vezes à rua Entretanto, 25 organizações da sociedade civil promoveram, a 20 de março, uma marcha até ao Parlamento, onde apresentaram uma petição para pressionar aquele órgão a não aprovar a atual proposta de revisão do código penal. Os ativistam denunciaram que alguns artigos do documento são contrários à Constituição da República moçambicana e as várias convenções internacionais ratificadas pelo país. Alice Mabota, presidente da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, critica que por exemplo, um artigo do documento que parece que “incentiva a que as pessoas violem para depois poderem casar”. A 14 de abril foi inaugurado na capital moçambicana um Gabinete para o Fomento Económico. Financiada pelo Ministério da Economia alemão, a representação das câmaras de comércio externo têm por objetivo responder ao interesse crescente das empresas alemãs em investir em Moçambique. O Parlamento aprovou, pela primeira vez, a 24 de abril, uma lei que criminaliza a caça furtiva de animais em extinção. A lei surge num contexto em que o país regista um abate indiscriminado destas espécies. Dhlakama recenseado e Muchanga detido O mês de maio começa com o assassinato do juíz Dinis Silica, em pleno dia, na cidade de Maputo. A morte do juiz que investigava a onda de raptos na capital moçambicana desencadeou uma greve silenciosa na classe. Depois de avanços e recuos, o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama foi recenseado a 8 de maio, na região da Gorongosa, provincia central de Sofala, como confirmou o seu porta-voz António Muchanga. A 16 de maio acontece uma nova manifestação na capital moçambicana. Cerca de 20 organizações da sociedade civil mostraram a sua indignação face à recente aprovação das novas leis que concedem mais regalias aos chefes de Estado e aos parlamentares tanto durante o seu mandato como no período de reforma. A marcha foi batizada com o lema: “Não ao roubo legalizado.” Depois de anunciar o fim dum cessar-fogo acordado com o Governo, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) ameaçou, a 4 de junho, dividir o país, caso o Governo não aceite a sua proposta de paridade na composição das forças de defesa e segurança. A 7 de junho, António Muchanga, porta-voz da RENAMO, foi detido em Maputo, depois de ter participado numa sessão do Conselho de Estado, do qual faz parte. A empresa anglo-australiana, Rio Tinto, anunciou, a 30 de junho, a venda das suas minas de carvão em Moçambique. A exploração tinha-se tornado pouco rentável para a multinacional e ela saiu com prejuízos de Moçambique. No dia 20 de agosto, foi lançada a primeira pedra para a construção da plataforma de exploração de gás natural em Pemba. O acordo de paz Depois de mais de um ano de tensão político-militar que, segundo cálculos da DW, causou pelo menos 54 mortos, a 5 de agosto chega a notícia que o país aguardava: o Governo e a RENAMO alcançaram finalmente um acordo para parar as hostilidades no país. “O primeiro passo é relativo ao cenário da assinatura dos documentos que consensualizamos de modo a que eles tenham eficácia no terreno”, afirmou no final Gabriel Mutisse, da delegação governamental. E no dia 5 de setembro, o Presidente moçambicano, Armando Guebuza, e o líder da RENAMO, Afonso Dhlakama, assinaram o acordo de paz. “Assumimos, ao mais alto nível, o compromisso de, em definitivo e de imediato, cessar todas as hotilidades militares”, afirmou o Guebuza. Do outro lado, Afonso Dhlakama, mostou esperança no futuro: “Espero que, com o acordo que hoje assinámos, se possa abrir caminho ao fim do Estado de partido único”. A 4 de outubro, centenas de pessoas manifestaram-se, em Maputo, contra a caça furtiva de rinocerontes e elefantes. Filipe Nyusi é o novo Presidente da República Mais de 10 milhões de eleitores foram chamados às urnas para participar nas eleições gerais de 15 de outubro. Os resultados das eleições gerais foram conhecidos 15 dias depois. O candidato da FRELIMO às presidenciais, Filipe Nyusi, obteve 57,03% dos votos contra 36,6% do líder da RENAMO Afonso Dhlakama e 6,36% do candidato do MDM, Daviz Simango. Nas legislativas, a FRELIMO conquistou 144 assentos, a RENAMO 89 e o MDM 17. O líder do segundo maior partido com assento no Parlamento passa a ter, pela primeira vez, um estatuto especial. O estatuto foi aprovado, a 3 de dezembro, em definitivo, pelo Parlamento. “A lei que demorou. Em qualquer país com multipartidarismo, as pessoas que ficam em segundo lugar sempre gozam desse estatuto”, comentou Afonso Dhlakama. Escândalos e investigação em Angola As zungueiras de Luanda, nome dado às vendedoras ambulantes, foram alvo de uma operação policial no fim de semana dos dias 25 e 26 de janeiro. A justiça angolana condenou, a 7 de fevereiro, a pena suspensa para um jornalista da Rádio Despertar, a emissora da UNITA (União para a Independência Total de Angola), o principal partido da oposição do país. A 10 de fevereiro, foi publicado um esquema que envolve a filha do chefe de Estado de Angola, Isabel dos Santos, no comércio de diamantes. De acordo com uma investigação da Revista Forbes, a filha do Presidente angolano, através do seu marido Sindica Dokolo, estabeleceu uma parceria com o Estado angolano para a aquisição da prestigiada joalharia suiça de Grisogono. A 18 de fevereiro, soube-se que o general angolano Leopoldino do Nascimento é o novo bilionário do país. E foi tornado público, a 26 de fevereiro, que a justiça portuguesa investigava influentes figuras da elite angolana, suspeitas de envolvimento em crimes económicos, como o próprio general Leopoldino Fragoso do Nascimento, general ligado à Casa Militar do Presidente de Angola. Angola na rota da diplomacia internacional O chefe da diplomacia alemã, Frank-Walter Steinmeier, chegou a 25 de março a Angola, acompanhado de uma comitiva empresarial. Foi a última etapa do périplo africano que levou Steinmeier também à Etiópia e à Tanzânia. A 5 de maio, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, terminou a visita de dois dias a Angola. John Kerry destacou os esforços de Angola em prol da região dos Grandes Lagos e o papel do Presidente Eduardo dos Santos como Presidente da organização regional. O Banco Africano de Desenvolvimento aprovou, a 13 de maio, o empréstimo de mil milhões de dólares para o Programa de Apoio à Reforma do Sector de Energia Angolano. A 16 de maio arrancou o censo geral da população e habitação, o primeiro em 39 anos de independência. Camilo Ceita, coordenador do gabinete central do Censo, refere que o censo está orçado em 20 milhões de dólares norte-americanos. Os primeiros resultados do censo foram conhecidos em outubro: em Angola vivem mais de 24 milhões e 300 mil pessoas. Polícia e justiça Um forte dispositivo policial impediu, a 27 de maio, o acesso ao centro do Largo da Independência, em Luanda, onde deveria ter lugar uma manifestação de jovens ativistas para protestar contra assassinatos, alegadamente levados a cabo por forças ligadas ao Governo e que coincidiu com mais um aniversário da alegada tentativa de golpe de Estado de Nito Alves de 1977. 20 jovens terão sido detidos. A 16 de junho, a justiça brasileira revogou o pedido de prisão contra o general angolano Bento Kangamba. Kangamba, que era acusado chefiar tráfico de mulheres de Angola para o Brasil e Europa, foi assim retirado da lista de procurados pela Interpol. A longa seca no sul do país tem consequências “dramáticas”, denunciou a 8 de julho o padre Pio Wacussanga, do município de Gambos, província da Huíla. A 17 de julho, o caso de desvio de dinheiro do Banco Nacional agita justiça em Angola. Dois dias depois surge a notícia de que o Presidente José Eduardo dos Santos assinou a garantia de 5,7 mil milhões de dólares ao Banco Espírito Santo Angola que protege o banco português BES – Banco Espírito Santo. A garantia data de 31 de dezembro de 2013 . A 29 de julho confrontos violentos entre garimpeiros e a polícia nacional, na província da Lunda Norte, provocaram a morte de 5 pessoas, o ferimento de várias e o posto da polícia ficou destruído. Manuel Nito Alves, o adolescente acusado de cometer um crime contra a segurança do Estado por ultraje ao Presidente José Eduardo dos Santos, foi absolvido a 14 de agosto. O tribunal considerou que as provas da acusação eram insuficientes. A 20 de agosto começou o repatriamento voluntário dos cerca de 30 mil ex-refugiados angolanos que vivem na vizinha República Democrática do Congo. Maria Augusto Magalhães, secretária de Estado para a Assistência Social, garantiu estarem criadas as condições necessárias. O processo viria a ser interrompido, poucos dias depois, devido ao receio da epidemia do ébola. Os esforços de repatriamento foram retomados, mais tarde, em novembro. Caso Kamulingue e Cassule de volta O julgamento do caso do assassinato ativistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule começou a 1 de setembro. Os dois ativistas foram raptados e mortos em 2012 quando tentavam organizar uma manifestação contra o Presidente José Eduardo dos Santos. Ainda em setembro, o Presidente José Eduardo dos Santos promoveu a brigadeiro um dos alegados autores do assassinato dos dois ativistas. O que levou o Tribunal Provincial de Luanda a declarar-se incompetente para prosseguir com o julgamento. Entretanto, no final do mês, o chefe de Estado angolano recuou e anulou a promoção do alegado autor do assassinato. Em consequência, o julgamento dos ativistas viria a ser retomado a 18 de novembro. No fim de semana dos dias 22 e 23 de novembro, a polícia voltou a impedir uma manifestação contra o Governo e deteve mais de uma dezena de pessoas. Segundo Adolfo Campos, no local da manifestação estavam também elementos da Juventude do MPLA, o partido no poder. Defensores dos direitos humanos em Angola mostraram-se bastante chocados com as agressões de que foi vítima Laurinda Gouveia, uma jovem de 26 anos, por parte das forças de segurança. A 2 de dezembro, o jornalista William Tonet volta a ser processado: foi a a 98ª vez. Os Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), consideraram-se difamados num artigo do jornal Folha 8 em que o semanário tecia comparações entre a atuação dos serviços secretos e a organização terrorista Estado Islâmico. Guiné-Bissau regressa à estabilidade Domingos Simões Pereira assumiu, a 9 de fevereiro, a liderança do maior partido do país, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). A 4 de abril, a Guiné-Bissau ficou abalada com a morte súbita, do ex-Presidente Kumba Ialá. O Governo de transição decretou três dias de luto nacional. Kumba Ialá, que fez 61 anos no ano de 2014, abandonou a vida política ativa no início do ano, dizendo na altura que "tudo na vida tem o seu tempo". Na política guineense durante duas décadas, Kumba Ialá fundou o PRS (Partido da Renovação Social) e ocupou o cargo de Presidente da República entre 2000 e 2003, tendo sido afastado por um golpe militar. Dias depois, a 13 de abril, os guineenses foram às urnas, dois anos após o golpe de abril de 2012. As eleições gerais decorreram sem incidentes. Domingos Simões Pereira, do PAIGC, foi eleito primeiro-ministro; as presidenciais só ficariam decididas na segunda volta, a 18 de maio, com a vitória de José Mário Vaz (“Jomav”) do PAIGC contra Nuno Nabian do PRS. A Liga Guineense dos Direitos Humanos reforçou o apelo, a 24 de abril, para que as autoridades angolanas informem sobre o paradeiro de cidadãos guineenses desaparecidos em Angola e esclareçam os casos de três imigrantes guineenses assassinados no país. “Parem o tráfico ilegal de madeira” O abate desenfreado da floresta guineense preocupa a população. E a 18 de junho, o Movimento Ação Cidadã lançou uma petição mundial com o título “Parem imediatamente o tráfico ilegal de madeira na Guiné-Bissau”. Apesar das denúncias feitas nos últimos dois anos, a madeira da Guiné-Bissau acaba em contentores e é exportada, sem regras nem controlo, alertou a petição, ao destacar que agora o corte ilegal está também a afetar também as florestas sagradas. Medo do vírus do ébola Desde abril que a Guiné-Bissau estava em alerta em relação ao vírus do ébola que matou milhares na Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri. A 12 de agosto, o primeiro-ministro guineense Domingos Simões Pereira anunciou um programa de emergência sanitária que incluiu o encerramento das fronteiras com a Guiné-Conacri. Pelo menos 21 pessoas morreram, a 26 de setembro, devido à em explosão da carrinha em que seguiam. A carrinha terá passado por cima de uma mina usada em operações militares. Ensinamento de Cabral Depois de o Presidente guineense ter exonerado António Indjai do cargo de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, no dia 16 de setembro, José Mário Vaz concedeu um indulto aos militares envolvidos no golpe de Estado de 2012. “É um resgatamento do ensinamento de Cabral, segundo o qual o homem pode a todo o momento recuperar-se e tornar-se útil à sociedade”, disse Octávio Lopes, diretor de Gabinete do chefe de Estado sobre o gesto de perdão do dia 30 de setembro. A 20 de novembro, a Organização Mundial de Saúde apontou críticas à Guiné-Bissau na prevenção do vírus ébola. Das 10 áreas definidas pela OMS para prevenir a infecção, só em três a Guiné-Bissau consegue um grau de execução superior a 50%. A 9 de dezembro, a Guiné-Bissau reabriu as fronteiras terrestre com a Guiné-Conacri, depois do fechamento de quase quatro meses por causa da epidemia do ébola. Cabo Verde – bom ano para a governação, mau ano agrícola A 20 de fevereiro, Angola decidiu injetar 10 milhões de euros no Orçamento de Estado de Cabo Verde. Uma novidade, pois até agora a cooperação financeira com Cabo Verde era o domínio dos países industrializados. A 12 de setembro sentia-se no país o efeito das medidas tomadas para evitar a propagação do vírus do ébola: a decisão de restringir a entrada no seu território de cidadãos estrangeiros não residentes provenientes de países da África Ocidental afetados pelo ébola provocou uma redução drástica do número de passageiros. O primeiro ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, anunciou a 18 de setembro, mudanças no elenco governamental. A remodelação incluiu a saída de quatro governantes e a entrada de outros tantos, além de alterações na estrutura executiva. Cabo Verde continua a ser o melhor entre os países lusófonos na avaliação do Índice Ibrahim de Governação Africana de 2014, divulgado a 29 de setembro, e que avalia fatores como educação, saúde, segurança, direitos humanos, desenvolvimento e economia de 52 países. O arquipélago recuperou o segundo lugar ao Botsuana, ficando apenas atrás das Ilhas Maurícias. A 17 de novembro, os agricultores e a população cabo-verdiana em geral contabilizaram prejuízos de um mau ano agrícola. Nalgumas zonas houve casos de fome. E o Governo anunciou 1,7 milhões de euros em ajuda. A ministra da Juventude, Emprego e Desenvolvimento dos Recursos Humanos de Cabo Verde, Janira Hopffer Almada, assumiu, a 14 de dezembro, liderança do partido no poder, o PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). É a primeira mulher a liderar o PAICV, no poder desde 2001. Vulcão do Fogo em erupção Há vinte anos que o vulcão na ilha do Fogo dormia tranquilo. Mas a 23 de novembro entrou em erupção com fortes explosões e correntes de lava e cinzas. A erupção do vulcão veio agravar uma crise na Ilha do Fogo desencadeada pela falta de chuva. Fim do monopólio no mercado da telefonia em São Tomé e Príncipe No arquipélago lusófono, o ano começa com uma baixa no Governo, a 3 de janeiro. O ministro da Saúde e dos Assuntos Sociais de S. Tomé e Príncipe pediu a sua demissão, depois de a imprensa são-tomense ter divulgado que ele teria instituído fraudulentamente subsídios extraordinários para si, a sua mulher e o irmão, residente em Angola, assim como para o seu diretor de gabinete. A 23 de maio, a empresa angolana de telecomunicações UNITEL entra no mercado de São Tomé e Príncipe. A UNITEL STP quebra com o ciclo de monopólio de mais de 20 anos que era detido pela companhia são-tomense de telecomunicações CST. Começou, a 1 de outubro, a construção de uma nova cidade em São Tomé e Príncipe, avaliada em mais de 250 milhões de euros. A obra deve estar concluída dentro de quatro anos e está a cargo de uma empresa chinesa. A construção é fruto de uma parceria público-privada, com investimento angolano e chinês. Chegar, ver e vencer A 3 de outubro, Patrice Trovoada regressou a São Tomé e Príncipe. O candidato a primeiro-ministro foi recebido na capital são-tomense por milhares de pessoas, dois anos depois de ter abandonado o país natal por perseguições políticas. A 12 de outubro, perto de 93 mil eleitores foram chamados a participar nas eleições legislativas, autárquicas e regionais. O dia ficou marcado pelo boicote em três localidades no sul do país. O vencedor destas eleições foi o partido de Trovoada, ADI – Ação Democrática Independente, que conquistou a maioria no parlamento com 33 deputados. Em segundo lugar ficou o MLSTP-PSD (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe-Partido Social Democrata) com 16 mandatos. Na terceira posição surgiu o PCD (Partido Convergência Democrática), que obteve cinco mandatos, e na quarta posição a UDD (União para a Democracia e desenvolvimento), com um mandato. Patrice Trovoada tomou posse como novo Primeiro ministro de São Tomé e Príncipe a 29 de novembro.

    Dec 26, 2014 Read more
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    2014, um ano dramático para África

    No Burkina Faso, o Parlamento foi incendiado. Na Nigéria, centenas ...

    No Burkina Faso, o Parlamento foi incendiado. Na Nigéria, centenas de estudantes foram raptadas pelo Boko Haram. O vírus ébola assola a África Ocidental. A retrospectiva dos principais fatos ocorridos em África, em 2014. A épidemia do ébola na África Ocidental Em março de 2014, são conhecidos os primeiros casos de ébola na Guiné-Conacri. Rapidamente, o vírus se espalha para os países vizinhos, Libéria e Serra Leoa. Mais tarde, outros países da África, da Europa e dos Estados Unidos relatam casos isolados. Em setembro, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, declara numa sessão especial do Conselho de Segurança, em Nova Iorque, se tratar do maior surto de ébola que o mundo já viu. "O número de casos está dobrando a cada três semanas. Em breve, haverá mais casos na Libéria do que nas quatro décadas da história da doença. Esta situação sem precedentes requer ações sem precedentes para salvar vidas e garantir a segurança da paz," diz. É, então, estabelecida a Missão das Nações Unidas para a Resposta de Emergência ao Ébola (UNMEER, na sigla em inglês), com cinco prioridades: parar o surto, tratar os infectados, garantir serviços essenciais, preservar a estabilidade e prevenir novos surtos. Em dezembro, a Organização Mundial de Saúde contabiliza mais de 19.300 casos de ébola, mais de 7.500 pessoas morreram, vítimas da doença. Enquanto na Europa, os infectados são tratados em clínicas especializadas, a África Ocidental luta por voluntários, estações de isolamento e médicos. As consequências do ébola são devastadoras: inúmeras crianças ficam órfãs, outras doenças - como a malária ou a febre tifóide - permanecem sem tratamento, a economia da Libéria, da Serra Leoa e da Guiné-Conacri vai ao chão. As pessoas colocam suas esperanças numa vacina que, no entanto, ainda se encontra em fase de testes. Sudão do Sul: guerra civil no Estado mais jovem do mundo No início deste ano, novos combates eclodem no país mais jovem do mundo, o Sudão do Sul. O Presidente Salva Kiir acusa seu ex-vice-presidente, Riek Machar, de uma tentativa de golpe. Qualquer tentativa de alcançar um cessar-fogo nas negociações é abalada por novos combates, o que irrita Edmond Mulet, responsável pelas missões de paz das Nações Unidas. "Depois de três anos de independência, o Sudão do Sul está agora à beira de uma catástrofe humanitária e um prolongado conflito interno," afirma Mulet. "Esta é uma crise provocada pelo homem," acusa o diplomata. Cerca de 1,3 milhão de pessoas fogem dos violentos distúrbios para os países vizinhos, milhares são mortos. Nigéria: a violência do Boko Haram - as estudantes de Chibok A 16 de abril, o grupo terrorista radical islamista Boko Haram sequestra mais de 200 alunas da cidade de Chibok, no norte da Nigéria. "Tenho duas filhas e elas estavam prestes a terminar a escola. A notícia do rapto delas foi um choque para mim. Eu até tinha vendido meu pedaço de terra para que elas pudessem ir à escola," relata o pai de duas das meninas sequestradas. Em reação ao sequestro, é criada a campanha internacional nas redes sociais #BringBackOurGirls, (ou "Tragam de Volta Nossas Garotas," em português). Meses depois, muitos nigerianos estão indignados, pois o Governo permanece incapaz de solucionar o caso, embora o paradeiro das meninas seja supostamente conhecido. As negociações com os rebeldes não levam a nenhum resultado. Os ataques do Boko Haram são cada vez mais frequentes, totalizando milhares de vítimas em 2014. Em dezembro, cidades importantes do norte da Nigéria, como Gwoza, estão nas mãos do grupo terrorista. O Presidente Goodluck Jonathan quer estender o estado de emergência nas províncias do nordeste. Em meio ao debate, Jonathan anuncia que irá se recandidatar nas eleições de 2015. República Centro-Africana: difícil recomeço Após massacres, em Dezembro de 2013, o ano novo na República Centro-Africana começa com um vislumbre de esperança: a Presidente de transição, Catherine Samba-Panza, eleva o líder rebelde Michel Djotodia ao topo do país. Em entrevista à DW, Samba Panza diz em outubro que, como os bombeiros, foi instalada no posto mais alto de seu país numa situação de emergência. "Os centro-africanos colocaram muita esperança em mim e não posso decepcioná-los. Vou fazer de tudo para garantir a paz, a segurança e especialmente o desenvolvimento, porque esta crise é, em primeira linha, uma crise de desenvolvimento e de pobreza," declara. No entanto, seus apelos às partes em confronto não são ouvidos. Com muita dificuldade, os cerca de nove mil soldados da União Europeia, da União Africana e das Nações Unidas, conseguem controlar os combatentes rebeldes Séléka e anti-balaca. África do Sul: 20 anos depois do Apartheid 20 anos após as primeiras eleições livres, a democracia está em crise na África do Sul. O Presidente Jacob Zuma enfrenta fortes críticas da oposição. Numa sessão parlamentar em novembro, Ngwanamakwetle Mashabela, do partido da oposição Combatentes pela Liberdade Económica (EFF, na sigla em inglês), ataca o Presidente Zuma. "O presidente do ANC é um ladrão! Um criminoso," acusou Mashabela. Zuma recebe críticas também de seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês). Ele é acusado de enriquecimento às custas do Estado, falta de cultura de liderança e abuso de poder. Muitos sul-africanos estão decepcionados com o ANC. O desemprego entre os jovens é alto, os dados econômicos são ruins. Recorde mundial: Dennis Kimetto Kipruto vence a Maratona de Berlim A 28 de setembro, o queniano Dennis Kimetto completa a Maratona de Berlim em duas horas, dois minutos e 57 segundos, um recorde mundial. "Estou me sentindo bem porque bati o recorde mundial. Estou realmente feliz," declara o queniano após a conquista. O atleta de 30 anos de idade ainda é considerado um novato entre os corredores de rua, mas já angaria um prêmio após o outro. "Eu me sinto bem em Berlim," disse Kimetto antes da corrida. Mali: acordo novamente adiado Com a eleição presidencial em setembro de 2013, a recente guerra civil no Mali deveria ter sido definitivamente ultrapasssada. Mas as tensões persistem. Em maio de 2014, os rebeldes tuaregues conquistaram a cidade de Kidal, no norte do país. Eles consideram justa a sua exigência de um grande Estado autônomo na região de Azawad. Uma proposta que o ministro maliano dos Negócios Estrangeiros, Abdoulaye Diop, garante, não está na agenda do Governo. "É importante que as negociações se voltem novamente para o que temos oferecido. Estamos dispostos a reformar o governo de modo que a auto-administração das comunidades locais será reforçada. Mas deve ocorrer no âmbito de um Estado unitário," esclarece o ministro. Em novembro, falhou a terceira ronda de negociações entre os rebeldes e o Governo do Mali, realizada no vizinho Burkina Faso. Burkina Faso: mudança na "terra dos justos" A tentativa de uma emenda constitucional, em outubro, foi a ruína de Blaise Compaoré, que por longo tempo foi o Presidente do Burkina Faso. A população não queria que ele pudesse se recandidatar para mais um mandato e foi às ruas em protesto. "Este Presidente persegue apenas os seus próprios interesses, ele não faz nada para nós. Temos tantos problemas aqui, o nosso país é paupérrimo e o Governo não tinha nada melhor para fazer do que perpetuar o poder do Presidente," declarou um dos manifestantes. Na sequência dos protestos de novembro, após 27 anos no poder, Compaoré foge para a Costa do Marfim. Os militares assumem o poder e instalam um Governo de transição no país, que deve preparar eleições no prazo de um ano. Denis Mukwege galardoado com o Prémio Sakharov do Parlamento Europeu Suas descrições agitaram os membros da União Europeia (UE): o médico Denis Mukwege contou ao Parlamento da UE sobre seu trabalho diário no hospital Panzi, na cidade congolesa de Bukavu. "Como posso ficar em silêncio, quando sei que esses crimes contra a humanidade são planejados com as razões económicas mais desprezíveis? Como posso ficar em silêncio, quando essas mesmas razões económicas levaram ao uso do estupro como uma estratégia de guerra?" perguntava-se o congolês em seu discurso. "Em cada mulher violada, vejo minha esposa. Em cada mãe estuprada, vejo a minha mãe, e em cada criança estuprada, vejo as minhas crianças," continuou e finalmente, colocou a pergunta aos diplomatas da UE: "Como podemos ficar em silêncio?" Em Bukavu, Mukwege tratava mulheres que foram violadas e mutiladas na guerra civil. Por este trabalho, o Parlamento Europeu atribuiu a ele o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, em novembro. Quénia: Tribunal Penal Internacional arquiva processo contra o Presidente Kenyatta Depois de mais de dois anos, o Tribunal Penal Internacional (TPI), arquiva o processo contra o Presidente queniano Uhuru Kenyatta, em dezembro. A promotora-chefe retira as acusações de crimes contra a humanidade que pesavam contra Kenyatta. O motivo: provas insuficientes. A ministra queniana dos Negócios Estrangeiros, Amina Mohamed, saúda a decisão. "Hoje em Haia, o procurador rejeitou as acusações contra Sua Excelência, o Presidente," declarou a ministra. Kenyatta poderia ter sido responsabilizado por cumplicidade em violação, expulsão e assassinato, após as eleições de 2007 no Quénia. Fatou Bensouda, procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional está decepcionada. "Este é um momento doloroso para os homens, mulheres e crianças que sofreram tremendamente com os horrores da violência pós-eleitoral e que esperaram pacientemente por quase sete anos para ver a justiça ser feita," lamentou. Al-Shabaab perpetra ataques na Somália e no Quênia Atentados suicida da milícia somali Al-Shabaab são cada vez mais frequentes no país vizinho, o Quénia. Em 22 de novembro, o porta-voz da polícia do Quénia, David Kimaiyo, informava: "no início desta manhã, um ônibus que seguia de Mandera para Nairobi foi atacado por um desconhecido número de bandidos e podemos confirmar que o ataque resultou na morte de 28 pessoas." Só em 2014, cerca de 200 pessoas foram mortas no Quénia em mais de 25 atentados. Alvos da Al-Shabaab foram civis, turistas, não-muçulmanos. Há anos, a Al-Shabaab luta contra o Governo central na capital somali, Mogadíscio. Tropas quenianas fazem parte da missão de paz africana na Somália.

    Dec 25, 2014 Read more
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    Há uma história de amor em Hulene

    Esta é a história de Cremilda e Rachide, catadores da ...

    Esta é a história de Cremilda e Rachide, catadores da maior lixeira de Moçambique, Hulene. E é a história de tantos outros que também deixaram a infância nas redondezas e começaram a catar ali, às portas de Maputo. Há uma história de amor em Hulene. No lugar onde as coisas chegam já mortas há gente que nelas busca a vida, gente incansável, solidária, por vezes violenta – quando a fome aperta – de uma violência que mostra que, neste cemitério de tudo, onde parece já não haver nada, afinal, ainda há por que lutar. A lixeira é monte atrás de monte, caminhos entre fardos de alguma coisa prontos a ser levados, ruelas estreitas e estradas largas entre cartão e cimento, farrapos de tecido e restos de comida em putrefação, restos de tudo. É um lugar estranho, num ambiente nauseabundo, um lugar intragável, irrespirável, insuportável. E no meio de tudo, nas aberturas, nas covas, grupos às dezenas curvam-se como se semeassem nalgum campo. Procuram, numa esperança desesperada, o que a imaginação fizer ressuscitar. Foi em Hulene, entre o lixo, que Rachide conheceu Cremilda e a conquistou. Já lá vão dois anos. Desde então namoram e um dia, sussurra o rapaz, ela há-de ser sua mulher: “Eu quero casar com ela”, diz tímido. “Quando eu juntar dinheiro, é para casar. Junto aos poucos. Cada um de nós junta.” Cremilda, uma rapariga bonita, Rachide, o rapaz forte Cremilda está a chegar do mercado. Numa mão traz um saco com couve, na outra a mão de Rachide. É sempre assim: quando passa o portão da lixeira, já ele espreita por ela, o lixo que espere. A jovem vem aborrecida, uns rapazes na rua meteram-se com ela. “Eu estou a dizer que sou feia”, queixa-se, mas o namorado não concorda: “Para mim é bonita”. Cremilda é bonita. Traz o cabelo preso em tranças postiças pretas que lhe caem sobre os ombros, um brinco de diamante falso na narina esquerda, três pulseiras no braço e um vestido feito de capulana, o azul do padrão a combinar com a fita que lhe descobre a testa. É uma rapariga elegante. Traz os olhos pintados – todos os dias. As unhas lembram uma cor qualquer. Os dois são filhos de Hulene, a maior lixeira de Moçambique. Ela tem 16 anos, ele 17, desde os 11 que os dois catam aqui. O quê não interessa tanto, papel, plástico, lata – e tudo em que virem algum uso. “Trabalhar, ganhar dinheiro para comprar comida, roupa.” Um mês extraordinariamente bom rende a Cremilda 5.000 meticais, nem 130 euros. Rachide consegue um pouco mais. É um rapaz forte, de braços habituados a fazer-se impor entre o lixo. Tal como a maioria dos catadores jovens, também ele espera desde manhã cedo que os camiões cheguem para lhes saltar para as carroçarias. São eles, os jovens, que, assim, têm o privilégio de poder vasculhar lá em cima, selecionando, com calma, o melhor do que houver desde o portão até que o lixo é despejado aos tantos pares de pés, mãos e olhos que por ele esperam. A esta etapa chama-se em Hulene de primeira colheita e é a primeira fase de actividade na lixeira. Ernesto, o pai desesperado Ernesto é amigo de Rachide. Sorri, orgulhoso, enquanto salta do camião e se aproxima. Na mão traz um saco de plástico. ”É carne. Para cozinhar. Estava naquele carro que estava a entrar agora”, explica. “Chamaram para ir buscar, ainda está congelado. Disseram: podemos dar àqueles que estão lá na lixeira para nós comermos.” Ernesto tem 28 anos, 16 de lixeira. Conhece o recinto como se fosse a sua casa e sabe exactamente quais os camiões que lhe trazem o que procura para alimentar mulher e dois filhos pequenos. Em Hulene há o grupo dos catadores de vidro, o grupo dos que recolhem plástico, o grupo do papel – A4, sem tinta –, há os que apanham ferro e há aqueles que levam de tudo. Quantas pessoas aqui vivem hoje do lixo não se sabe ao certo, costuma apontar-se para cerca de 700. No início só aqui havia uma mulher Quando a lixeira foi aberta, o bairro de Hulene ficava na periferia de Maputo. Conta-se que, naquele tempo, apenas uma mulher aqui vivia. Pagava a algumas catadoras o lixo que lhe traziam e revendia-o a quem o quisesse. Isso foi há mais de três ou quatro décadas. Durante a guerra civil, a zona era procurada por aqueles que buscavam segurança e hoje, a cidade, que entretanto cresceu, fica a menos de dez quilómetros do centro da cidade. Hulene é agora uma zona residencial com alta densidade populacional e, aqui, entre as casas, a lixeira, que entretanto cobre quase 20 hectares, continua a ser o único local oficial para o depósito de resíduos sólidos de Maputo, uma cidade com mais de um milhão de habitantes, que produz mais de uma tonelada métrica de lixo por dia. Fumo, poeira e insectos Devido à constante combustão, ao fumo provocado, à poeira que se forma e aos insectos que atrai, entre mosquitos na época das chuvas e moscas todo o ano, a lixeira representa um alto risco para a saúde pública. Nos dias em que o vento não perdoa, esse fumo, essa poeira e o cheiro chegam à vizinhança e passam mesmo de lá quase até à baixa de Maputo. É aqui, no meio deste tudo, aqui mesmo, que Ernesto prepara a sua carne meio podre. “Vamos apanhar lata, meter água. Como não tenho dinheiro, pomos sem sal. É isso que nós fazemos aqui na lixeira”, conta Ernesto. ”Se alguém apanhou 20 contos [20 meticais, 50 cêntimos de euro], podemos organizar, cada um dá 20 e compramos tomate, 1 kg de arroz ou farinha para comermos.” Porque “não há maneira, não há maneira que nós podemos ter emprego”. Em dias bons, Ernesto faz 100, 150 meticais, ou seja, 2,5 euros, mas em princípio, não mais de 4 euros. Quando chega a casa, diz, dá o que ganhou à mulher “para saber sustentar as crianças”. Ernesto e Rachide têm um sítio onde deixam os fardos de cartão e plástico que, ao fim da semana, levam para vender num ponto de reciclagem. São rapazes organizados e são poupados – um para conseguir pagar a escola do filho de oito anos, o outro para casar. “Quero sair daqui, para um novo emprego”, diz Rachide. “Penso fazer muita coisa. Trabalhar. Pode ser motorista.” Mas o jovem abandonou a escola na quinta classe, quando a mãe morreu. Desde então, Cremilda é a sua família. Parece um menino grande, de chapéu de praia às florzinhas e uma tatuagem no braço, daquelas que saem ao lavar. Mas para menino sabe bem o que quer e o que quer está ali, a poucos metros. Cremilda não trabalha com eles. Vasculha com as outras mulheres, as crianças e os mais velhos. São estes que se dedicam à seleção mais cuidadosa depois de o lixo ser despejado. Esta é a segunda fase de actividade da lixeira. Victor Ubisse, o avô otimista “Somos pobres, não temos nada”, conta Victor Ubisse. “É como essas crianças também. Há crianças que não têm pai, não têm mãe, estão a viver de qualquer maneira.” Victor Ubisse, de 57 anos, já viu outras vidas. Antes de chegar à lixeira, trabalhava como cozinheiro para um português, ainda pequeno, ainda na época colonial. Com a independência, o português deixou Moçambique e ele foi para a África do Sul. Ficou lá uns anos, trabalhou nas minas, depois voltou. Sem emprego nem casa, instalou-se em Hulene. “Eu cheguei a trabalhar aqui até casar. A minha mulher faleceu e só fiquei eu com os meus oito filhos. Os netos estão comigo em casa.” Tal como Cremilda, Ubisse procura um pouco de tudo que lhe traga o sustento dos netos. E procura restos de comida para alimentar os porcos que cria em casa para vender. Por dia consegue 20 meticais, 30, até 50, ou seja, até pouco mais de um euro. Para os mais velhos que aqui procuram a sobrevivência, o rendimento é baixo. Já não têm pernas para subir aos camiões nem força para brigar com os mais jovens que, por vezes, lhes roubam o que recolheram. E no entanto, o homem desgastado pela vida, magro, vê o que tem como uma dádiva. Não morreu na guerra, não morreu no país vizinho e portanto, diz, está bem. O dia do casamento A terceira e última fase de atividade está praticamente entregue às mulheres que preparam os produtos recolhidos para consumo próprio ou para venda. Quando não vêm clientes comprar o que têm, são elas mesmas que vendem ou mandam vender. Hoje, Cremilda não juntou muito. Mas são quase 17 horas, cinco da tarde, é tempo de voltar para casa. Não tem relógio no pulso, mas também não faz falta. Em Hulene, o sol esconde-se sempre por detrás de um dos tantos montes de lixo, um monte que, dizem, por vezes chega aos dez metros de altura e mais. Além disso, Rachide já a espera. Com o saco com couve numa mão e a mão de Rachide na outra, a rapariga afasta-se pelos caminhos entre curvas de lixo, por detrás dos montes. A casa onde mora com as irmãs e o namorado fica do outro lado de Hulene. É por esta hora que Cremilda se permite sonhar. Sonha com o dia do casamento, todos os dias. O casamento, diz, será a festa mais bonita, num dia não tão quente, bem longe da lixeira. É que, em Hulene, há uma história de amor, uma história que mostra que neste cemitério de tudo, onde parece já não haver nada, afinal, ainda há por que lutar.

    Dec 24, 2014 Read more
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    9 de Novembro de 1989 - a noite mágica que pôs fim à guerra fria

    O Muro caiu. Uma cicatriz de betão de 155 quilómetros ...

    O Muro caiu. Uma cicatriz de betão de 155 quilómetros de comprimento com 28 anos de vida cai, pondo fim à divisão da Alemanha e da Europa. Chegava ao fim o século XX. O Muro caiu. Uma cicatriz de betão de 155 quilómetros de comprimento com 28 anos de vida desmorona-se, pondo fim à divisão da Alemanha e da Europa. A festa de rua dos berlinenses naquela noite gélida de 9 de Novembro de 1989, foi seguida nas televisões de todo o mundo. Ninguém previu que de 1989 a 1991 a revolução se espalharia como uma chama com o efeito de desmantelar o socialismo soviético. Como a tomada da Bastilha, dois séculos antes, a queda do Muro mudaria a face do mundo. Um feature da autoria de Helena de Gouveia.

    Nov 6, 2014 Read more
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    "Escola da Amizade" – Solidariedade internacional?

    Em 9 de novembro de 1989 “caiu” o Muro de ...

    Em 9 de novembro de 1989 “caiu” o Muro de Berlim. O início do fim da Rep. Dem. da Alemanha, que teve muitos contatos com países socialistas africanos. Até fundou uma escola para crianças moçambicanas em plena Alemanha. 899 crianças moçambicanas em plena República Democrática da Alemanha (RDA). Milhões investidos. Um projeto de solidariedade internacional. Ou, antes, de interesse nacional? Samora Machel disse uma vez que “a formação de crianças deveria ser como um tomate. Quando está maduro, explode e as sementes voam para os lados.” A ideia de Machel, o primeiro Presidente da República de Moçambique e, naquela altura, finais dos anos 70, líder do partido FRELIMO, adequa-se bem à “Escola da Amizade” (em alemão “Schule de Freundschaft”). O projeto da instituição veio assinado na bagagem da visita à África em 1979 por Erich Honecker, secretário-geral do Partido Socialista Unificado da República Democrática Alemã (SED). O acordo da “Escola da Amizade” era um de diversos acordos de Amizade e Cooperação. Uma escola na RDA para crianças moçambicanas Três anos depois, o edifício estava em pé. Foi construído na pequena cidade de Staßfurt, perto de Magdeburg na província da Saxónia-Anhalt, na Alemanha de Leste. Lá, iriam viver durante quatro anos 899 crianças moçambicanas. Lá, estas crianças iriam receber formação escolar e, depois, profissional. Iriam tornar-se pedreiros, Embora a formação política tenha sido entregue à responsabilidade dos professores moçambicanos, a ideologia socialista era uma constante no dia-a-dia da escola, que se terá tornado na predileção de Graça Machel, mulher do presidente moçambicano e, na altura, ministra da Educação do país. A “Escola da Amizade” era oficialmente um símbolo de solidariedade internacional. Mas também para a RDA a instituição deveria trazer vantagens – sobretudo económicas, o que tornava a intenção do projeto um tanto questionável. O colapso da Alemanha de Leste Em 1988, um ano antes do colapso do bloco comunista e, com ele, da RDA, a “Escola da Amizade” chegou ao fim. A primeira geração de adolescentes moçambicanos tinha terminado a formação e regressado ao seu país. Mas Moçambique ainda estava em guerra e, no país, não se falava das medidas de desenvolvimento previstas. A maioria dos ex-alunos da “Escola da Amizade” não regressou à Alemanha, depois do regresso a Moçambique previsto para logo que a formação terminasse. Em 2009, vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, Marta Barroso conversou com Custódio Tamele, um dos moçambicanos de Staßfurt, Heinz Berg, o ex-director do internato da escola, e Joachim Scheuermann, ex-professor de Física – acompanhe as entrevistas nesta edição do Contraste.

    Nov 3, 2014 Read more
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    Guadalupe de Ceita lamenta não ter podido transformar São Tomé

    Guadalupe de Ceita, um dos sobreviventes da luta pela independência ...

    Guadalupe de Ceita, um dos sobreviventes da luta pela independência nacional, abraçou a causa ainda jovem. O médico formado em Portugal tinha o sonho de transformar São Tomé e Príncipe num país onde desse gosto viver. Quatro décadas depois da proclamação da independência de São Tomé e Príncipe, Guadalupe de Ceita diz ter sido alvo de um “golpe” levado a cabo pelos próprios colegas com quem lutou pela libertação do arquipélago. Após a proclamação da independência, alcançada a 12 de julho de 1975, o médico são-tomense foi impedido de fazer parte do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Nesta entrevista à DW África, Guadalupe de Ceita, hoje com 85 anos, dá a conhecer outros meandros da história da independência de São Tomé e Príncipe. DW África: Quem é Guadalupe de Ceita? Guadalupe de Ceita (GC): É um político e, ao mesmo tempo, um estudante da altura. Eu comecei a minha vida política aos sete anos, por assim dizer. Porque quando estava na Roça Java com o meu pai, que trabalhava nessa roça como enfermeiro, eu conviva com angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos e via como os portugueses maltratavam os africanos com pancada. À mínima coisa que fizessem espancavam-nos. E comecei a ter um certo horror aos empregados europeus que batiam nos negros sem que eles fizessem algo de valor. DW África: Como é que ingressou na luta pela independência nacional? GC: Quando completei o liceu, depois do quarto ano, vim de férias para São Tomé com o Miguel Trovoada. O Miguel Trovoada estudava Direito e eu Medicina. Em São Tomé encontramo-nos com Leonel Mário d’Alva, Filinto Costa Alegre e António Barreto Pires dos Santos (Oné). Reunimo-nos algumas vezes em Bobô-Forro e outras vezes em Boa Morte e conseguimos combinar que havíamos de lutar contra o colonialismo. Ficou combinado que o Miguel Trovoada seguisse para África. Ele já tinha feito o primeiro ano do curso de Direito e estava a caminho do segundo ano. Eu já estava no quarto ano. Por isso, em vez de trocar os estudos por uma vida incerta, o melhor era acabar o curso de Medicina. Então eu voltei para Portugal e Miguel Trovoada seguiu para África. Mas logo que acabei o curso segui para África. DW África: Naquela altura a comunicação era ainda difícil. No entanto, conseguiam viajar e participar em reuniões. Não era perseguido pela PIDE, a polícia política portuguesa? GC: Eu tinha o meu nome oficial, Oné tinha o seu nome, Medeiros tinha o seu nome. Quando viajássemos seriam presos, segundo Barreto Pires. A PIDE tinha os nossos nomes, mas nunca conseguiram prender-nos porque não viajamos para os paises com os quais a polícia política portuguesa tinha relações. DW África: Qual foi o momento mais conturbado durante a luta de libertação de São Tomé e Príncipe? Foi na Guiné Equatorial ou no Gana? GC: Foi em 1966 quando deram o golpe contra Kwame Nkrumah no Gana. Todos aqueles que tinham relações com a Frente de Liberação de Moçambique (FRELIMO) e com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) tinham representantes no Gana. A África do Sul e a Namíbia também tinham os seus representantes. E quando se deu o golpe correram com todos, tiveram que deixar o Gana. Subiu ao poder um indivíduo que estava contra Nkrumah e que não queria ver nacionalistas no Gana. Então fui para o Togo, onde estive um ano, e depois fui para o Congo, onde fiquei três anos. DW África: Encontraram apoio suficiente no Congo? GC: Encontramos apoio atraves do MPLA de Agostinho Neto. Fomos para a China e para Coreia como visitantes políticos. Estivemos na Conferência de Roma. Três anos depois houve outro golpe e tivemos que sair outra vez. DW África: Foi na Guiné Equatorial que ocorreu o congresso de transformação do Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP) em Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). O Presidente da Guiné Equatorial na altura tinha algum receio desta reunião? E que motivos levaram a que o congresso, que previa a presença de cerca de 300 pessoas, ficasse confinado a oito pessoas? GC: Portugal tinha ameaçado os países africanos. Aqueles que dessem apoio seriam atacados. Talvez por isso ele tenha recusado a realização do nosso congresso na ilha e preferido o continente. Entretanto, quando fizemos o congresso éramos apenas oito, entre os quais Miguel Trovoada, Oné, Pinto da Costa e José Fret Lau Chong. O congresso foi feito numa casa e à porta fechada. E Pinto da Costa foi eleito secretário-geral. DW África: Qual era a ligação que havia entre o CLSTP e os outros movimentos nacionalistas africanos? GC: Tínhamos boas relações com o MPLA e com a FRELIMO, mas sobretudo com o Gabão. DW África: Manuel Pinto da Costa foi eleito para o cargo de secretário-geral do CLSTP por ser uma figura de consenso na altura? GC: Eu não queria aceitar. Como não aceitei, ninguém votou em mim. José Fret Lau Chong teve dois votos. Ele votou em si próprio e eu votei nele. Éramos apenas oito. Aquelas centenas de são-tomenses da Guiné Equatorial com quem tinha vivido três anos estavam à minha espera e a reunião, mas não fizemos isso. Pinto da Costa é que foi eleito. Em 300 e tal votos, ele teve oito. DW África: Recorda-se de algum episódio relevante que, para si, marcou a luta pela independência nacional? GC: Um homem como eu, que fundou o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe, que percorreu o mundo falando em nome de São Tomé, que reuniu o CLSTP na Guiné Equatorial, e não me quiseram deixar entrar em São Tomé. Foi um episódio lamentável. Pinto da Costa disse que eu e os outros podíamos fazer parte do partido. Mas eu disse para comigo: se Gastão d’Alva Torres, que defendeu a nossa tese e foi chefe da delegação no Acordo de Argel [assinado em 25 de agosto de 19741 em Argel, pelos representantes de Portugal e do PAIGC, movimento de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde], não pode voltar a ingressar no Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, eu também não. Foi assim que deixei de fazer parte do MLSTP/PSD. DW África: O que levou ao afastamento de Hugo de Menezes Tomás Medeiros na luta de libertação nacional? GC: Eu e o Hugo Menezes percorremos o Gana e o Togo. Quando chegamos ao Congo, o MPLA ia para Frente Leste e ele decidiu ir também. Mais tarde, quando ele chegou à Guiné Equatorial, já tínhamos realizado o congresso sem a participação dele. Então, foi-se embora e nunca mais voltou. DW África: A resolução da Assembleia Geral da ONU das Nações Unidas, que a 14 de novembro de 1972 reconheceu a legitimidade da luta armada em África contra Portugal, ou o Acordo de Argel: qual teve mais peso na independência de São Tomé e Príncipe? GC: Foi o Acordo de Argel, assinado a 26 de novembro de 1974. Esta é que foi a data histórica principal, porque foi o Acordo de Argel que reconheceu a independência nacional. DW África: Como é que se explica o rápido declínio socioeconómico de São Tomé e Príncipe nos primeiros 15 anos após a independência? GC: Um exemplo só: eu percorri São Tomé e Príncipe com o MEP, o Programa de Erradicação do Paludismo, e vi tudo transformado em mata. São Tomé tinha cacau por todos os cantos antes da independência, basta dizer isso. E não se falava disso. São Tomé transformou-se num país independente com possibilidades de singrar, mas não singrou e nós ficamos nessa situação. DW África: Sente alguma mágoa em relação a isto? GC: Eu só tenho mágoa de uma coisa: não ter podido transformar São Tomé e Príncipe. Eu, Guadalupe de Ceita, transformava São Tomé.

    Oct 31, 2014 Read more
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